Não houve jogos decisivos do campeonato de futebol português nem festas e procissões do Senhor de Matosinhos que afastassem o público, entre os dias 13 e 15 de Maio, da lindíssima Biblioteca Florbela Espanca, onde decorreu a décima edição do Festival LeV – Literatura em Viagem.
Na sexta-feira, dia 13, às 21h30, coube ao historiador José Pacheco Pereira inaugurar o evento com uma conferência de abertura dedicada ao signo da viagem no livro, na História e na ficção. A partir da Odisseia, de Homero; d’ A Divina Comédia, de Dante; d’ Os Lusíadas, de Camões; d’ A Montanha Mágica, de Thomas Mann e do Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, entre outros, Pacheco Pereira refletiu na história da literatura ocidental como uma história que permite viajar pela imaginação cultural e identitária da Europa, cartografando distintas épocas e geografias.
No dia seguinte de manhã, Paulo Ferreira, da Booktailors, ofereceu uma oficina destinada a escritores ou escritoras com rascunhos na gaveta, intitulada “Escrevi um livro, e agora?”. Às três da tarde, a mesa da editora Elsinore, “A volta ao dia em 80 mundos”, moderada por Francisco José Viegas, proporcionou a uma Galeria Municipal repleta de gente a oportunidade de ouvir Gonçalo Cadilhe e Paulo Moura, espécie invejada de escritores / jornalistas viajantes. Numa época em que atravessar e visitar vários mundos é possível com o simples ato de clicar num botão, ambos defenderam que “não se nasce viajante, aprende-se a viajar”, alertando para a necessidade de se combater o ritmo frenético dos nossos tempos a favor da “imersão” física no local. É, assim, essencial ao viajante, estar disponível para ouvir os outros; dar-se ao lugar e às suas gentes, deixar que o corpo se deixe possuir pelo território. Enfim, estar aberto às infinitas possibilidades de descoberta na viagem.
Filipe Morato Gomes, guia na agência Nomad, de viagens de aventura, retomou esta mesma dimensão da surpresa a propósito das viagens que organiza ao Irão. Sentir é a palavra de ordem de Filipe, para quem conhecer um país implica embrenhar-se na geografia social, nos costumes locais, nas casas e na gastronomia do território que explora. Filipe Morato Gomes afirma que “o Irão deve ser degustado devagar”, ressalvando que deixar correr o tempo é essencial: tempo para ver, mas também para deixar acontecer. Esta Nomad Talk marcou a estreia de uma colaboração entre a agência de viagens e o LeV, numa relação que parece poder vir a dar grandes frutos. A partir de 2016, ao abrigo desta parceria e ao ritmo de um por ano, será enviado um escritor para um lugar longínquo sobre o qual terá, depois, de escrever um texto. Durante a próxima semana, saber-se-á qual o autor que viajará até Caxemira para depois partilhar as suas histórias com os leitores e espectadores do festival.
Entre os segredos da Pérsia revelados por Filipe Morato Gomes e as dicas de viajante de Gonçalo Cadilhe e do jornalista Paulo Moura, ouviram-se duas grandes escritoras portuguesas. João Luís Barreto Guimarães guiou a conversa com Patrícia Reis e Teolinda Gersão, num percurso pelas suas obras e opções literárias, assim como pelas liberdades estéticas e afinidades literárias que reivindicam. Provocada pelo poeta sobre a existência de uma “escrita masculina”, Patrícia Reis vincou, ironicamente, que “quando uma mulher escreve sobre relações, escreve sobre afetos; quando um homem escreve sobre relações, escreve sobre a condição humana”.
A fechar a programação de sábado, o momento mais aguardado pelas centenas de visitantes do LeV: a entrevista de vida ao ensaísta, cronista e romancista italiano Claudio Magris, por Rui Tavares. O autor, várias vezes apontado como um sério candidato ao Prémio Nobel da Literatura, começou por assumir a relação de estima que desenvolveu com Portugal, o primeiro país onde um livro seu foi traduzido. Perante uma Europa que tem sido palco de imensos horrores ao longo dos séculos e que se encontra sempre no limiar da tragédia, Magris afirma que não há respostas fáceis. Partindo do conceito de “dever de memória”, tornado famoso por Primo Levi e trazido à conversa por Rui Tavares, o ensaísta destacou o potencial criativo das recordações na criação de futuros alternativos. No entanto, alerta: não se pode negar a História, é certo, mas também não se deve viver refém dos seus legados.
No dia seguinte, foi sob um sol convidativo que o britânico Howard Jacobson deu início à conversa que se tornou, sem sombra de dúvida, o ponto alto do festival. “Escolham um homem no seu segundo ou terceiro divórcio, judeu e de preferência romancista. Vão ver que vai correr bem”. Entre conselhos matrimoniais, identidades predadoras, judaísmo, mães protetoras e comédia, mas, sobretudo, entre muitos risos, o autor descobriu, com Tito Couto e Pedro Vieira, que judeus e portugueses são mais parecidos do que possa parecer, pelo menos, na arte do queixume. Uma conversa descontraída, bem-humorada e muito interessante que deu origem ao ecoar de muitas gargalhadas no espaço da Galeria Municipal.
Depois de uma sessão hilariante onde Jacobson fez uma apologia do livro em papel e da leitura, houve tempo, às 16 horas, para refletir sobre o poder terapêutico da literatura com Ella Berthoud e Clara Ferreira Alves. Apesar de terem existido guerras que começaram com um texto e autores, como Salman Rushdie, que viram as suas vidas ameaçadas por causa de um livro, tanto a biblioterapeuta como a jornalista reconheceram potencial redentor nos livros, pelo menos, em certa medida.
A esperança de que a literatura possa salvar ou fazer com que os leitores se sintam reconfortados está, em parte, também relacionada com a capacidade que os livros têm de, através da imaginação, nos guiar pelas ruas da nossa infância, mas também por mundos desconhecidos, alternativos àqueles que nos são familiares. Este trabalho de arquitetura de geografias literárias é engenhosamente manipulado pelos escritores. Na mesa “Viagens da Minha Terra”, João Ricardo Pedro, Alberto S. Santos e David Toscana contaram, a quem assistia, os variados processos pelos quais criam e elaboram um mapa das cidades que estão representadas nos seus livros. Apesar de os territórios percorridos surgirem sempre ancorados na realidade, João Ricardo Pedro, autor que lançou, em Março, o arrebatador Um Postal de Detroit, alertou para o facto de não existir correspondência direta entre as cidades reais e as imaginárias, por exemplo, entre a São Petersburgo dos livros de Dostoiévski e a São Petersburgo que podemos visitar fisicamente.
“Novas Vozes”, a mesa que se seguiu, foi talvez a menos bem conseguida e aquela a quem coube as honras de encerrar a décima edição do Festival LeV. Lituânia, Dinamarca e Espanha foram os países representados por Ilze Butkute, Josefine Klougart e Andrés Barba, jovens escritores europeus cujos escritos em prosa e em poesia refletem as inquietações que assolam o continente. Com esta conversa e com as restantes sete mesas proporcionadas pelo encontro, viajou-se durante quase três dias por eras e geografias distintas, sinalizando as fronteiras porosas entre realidade e ficção, entre a experiência vivida e a imaginada, e cartografando uma Europa em crise. Se a viagem implica regresso, os percursos trilhados durante o LeV deste ano conduzem-nos ao ponto de origem em 2017: a Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos, nos dias 12, 13 e 14 de Maio, as datas confirmadas para a décima primeira edição de um festival que oferece a oportunidade de viajar pelo globo através das páginas de um livro.